Professora Doutora Anne Marie Sumner,
Arquiteta e catedrática na
Universidade Mackenzie (SP)
escreve:
“Tenho acompanhado o processo referente à idéia de “parque” no Minhocão e anexo texto que escreví a respeito, por solicitação da
Comissão de Comunicação do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de SP/CAU-SP,
do qual sou conselheira.
Minhas saudações a todos,
Atenciosamente,
Anne Marie Sumner”
Leniência * Urbana
Arquiteta Anne Marie Sumner
A defesa da manutenção do Minhocão como parque ou similar, dá a medida da redução do nosso contrato social, como sociedade civil.
Os seus correlatos são as escolas de lata e os terminais em praça pública: Bandeira, Dom Pedro II e Princesa Isabel.
A insalubridade decorrente da falta de aeração e incidência de luz solar nos primeiros pavimentos lindeiros ao Elevado;
o resultante socavão sombrio sob o mesmo;
o completo desdém pela memória histórica tamponado a Avenida São João, saída a oeste do século XVIII, cujo ponto de fuga era o primeiro centro de São Paulo; a aniquilação da escala mais singela da Amaral Gurgel, obstruída na sua conexão com o Largo do Arouche no segundo centro de São Paulo;
são estas as evidências que, associadas à permissividade da vontade individual – sobreposta ao coletivo que lá vive – ao correr praticamente dentro dos apartamentos lindeiros, indicam de modo contundente a leniência referente ao nosso contrato social e sua progressiva fragilidade.
No Fórum realizado na Câmara Municipal em 14 de abril de 2014, vários setores da sociedade civil deram seus pareceres nominalmente referentes à insalubridade, além da CET – Companhia de Engenharia de Tráfego – que afirmava que o fluxo da ligação leste-oeste poderia ser equacionada com o minhocão desmontado. Deste modo, qual o argumento de defesa da manutenção do mesmo como uso de lazer?
Há quem pondere que a população teria se apropriado e se acostumado ao seu uso nos fins de semana sem autos; certamente menos nefasto que o quadro anterior, mas isto é suficiente para validar o paliativo?
O custo do desmonte seria desproporcional? (1)
Vale lembrar que as cidades cometem erros que historicamente podem ser corrigidos.
Praça de Atocha, Madri:
a esquerda antigo e extinto viaduto,
a direita a atual Praça
Coréia do Sul – Na capital Seul, antes e depois da eliminação do viaduto e o local reurbanizado.
“De todas as operações, a mais importante pela sua grandiosidade e pelos efeitos na revalorização da área, foi a demolição do viaduto-autoestrada, de 5,8 kms que cortava o centro da capital.
A eficácia da rede de transporte coletivo e a acessibilidade da área vem se incrementando.
O número de carros chegando à área diminuiu em 43%, sendo também muito significativas as reduções de partículas contaminantes , CO2 e NO2.
O governo da cidade estima uma redução no “efeito estufa” no centro da cidade, em 8º C.
Apesar da polêmica antes da demolição, hoje conta com mais de 92% de aprovação da população”.
* Dados compilados de Relatório da SINERGIA.
Nas últimas décadas, Seul e Boston foram bons exemplos: a primeira desmontou o viaduto e re-naturalizou o Rio Cheonggyecheon e a segunda, com o Big Dig mergulhou o imenso complexo viário e repôs, no chão, áreas de interesse ambiental e lazer públicos.
Rio de Janeiro
Parte debaixo da extinta Perimetral
Qualquer semelhança com o Minhocão
é mera coincidência?…
Rio de Janeiro – Sem a Perimetral
Os cariocas foram contundentes com o desmonte recente da Perimetral, devolvendo a abertura da cidade ao mar na sua histórica área central.
Os centros primeiros são emblemáticos e devem ser tratados de modo exemplar.
São Paulo, terceira maior metrópole do mundo e a maior capital da América Latina.
Minhocão:
“conservadores” querem manter essa estrutura detonada e decrépita, indo contra os conceitos e ventos da modernidade, progresso e revitalização da cidade, como ocorre em outros países e no Rio.
Com o Elevado de São Paulo, o paliativo de perfurar sua estrutura atual para entrada de luz, de revesti-la e encapá-la;
a ideia de adequação de pavimentos no nível do tabuleiro para usos comerciais, com o consequente deslocamento dos moradores que lá vivem, ou sua convivência en face com a nova companhia cotidiana do parque;
os jardins verticais – de difícil manutenção – além dos jardins na própria já combalida laje do viaduto; tais ações teriam sentido?
Reporiam naquela centralidade a dignidade urbana original?
Diria que em nenhum sentido, nem ético, nem técnico, nem estético.
A cidade como possibilidade plena dos cidadãos dá-se fundada numa relação entre civilização e cultura onde a primeira realiza e concretiza a invenção e hipótese da outra (Hannah Arendt).
O que temos visto contudo, é que a razão instrumental, em princípio civilizatória, ao passar a ter em si própria o seu sentido – e agir portanto independente da cultura – fica sem sentido.
A mera existência do Elevado é evidência de tal instrumentalização.
À demanda de maior número de áreas de e lazer diria que a ação mais urgente seria o resgate daquilo que já temos, restituído ao seu uso original, a começar pelas emblemáticas Praça da Bandeira, Parque Dom Pedro II e Praça Princesa Isabel.
* Leniência – no sentido da condescendência e não no sentido jurídico. (
1) Do ponto de visto econômico, como é sabido, as vigas pré-fabricadas do Elevado poderiam ser reutilizadas para obras de passagem de nível ou drenagem em outros locais da cidade, sendo que apenas os pilares seriam implodidos, certamente menos custoso que a restauração da combalida estrutura do Elevado, com suas já existentes infiltrações, além das obras de adequação para escape público (entre outras) exigidas pelos Bombeiros e por eles explicitado na referido Fórum da Câmara.
NR: as ilustrações ao artigo da Professora Dra. Anne Marie Sumner são de nossa Redação.