Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia
Por que o Minhocão não deve ser o nosso Parque High Line
| Publicado em Artigos Semanais | em 05-10-2017
No debate sobre o destino do Minhocão, via elevada que liga a Zona Oeste à Zona Leste de São Paulo, passando pela região central, é frequente a comparação com o Parque High Line, de Nova York. Mas seria este, de fato, um bom modelo para o Minhocão?
Neste artigo para o Blog ObservaSP, Paula Santoro e Mariana Shiller mostram como foi o contexto de construção do High Line marcado por uma cultura de filantropia e participação da sociedade civil na dimensão pública norte-americana. Já no caso do Minhocão, qual será o seu destino? Estímulo a uma frente de construção e valorização imobiliária ou um parque para os moradores? E quem financiará esta transformação e para quem?
O artigo “Por que o Minhocão não deve ser o nosso Parque High Line” é um produto do Blog observaSP — uma iniciativa do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade/FAU/USP), que integra o projeto de pesquisa “Estratégias e instrumentos de planejamento e regulação urbanística voltados à implementação do direito à moradia e à cidade no Brasil”, com financiamento da Fundação Ford. O INCT Observatório das Metrópoles participa do projeto com estudos de caso no Rio de Janeiro, coordenado pelo professor Orlando Alves dos Santos Jr., e em Fortaleza, coordenado pelo professor Renato Pequeno.
O Blog observaSP tem como objetivo monitorar e influenciar políticas urbanas municipais, com foco na função social da propriedade, inclusão socioterritorial da população de baixa renda e ampliação do acesso aos serviços urbanos.
Coordenado por Paula Santoro e Raquel Rolnik, o ObservaSP tem monitorado os desdobramentos do novo Plano Diretor Estratégico de São Paulo e a implementação da Operação Urbana Consorciada Água Branca.
Por que o Minhocão não deve ser o nosso Parque High Line
por Paula Santoro e Mariana Shiller
No debate sobre o destino do Minhocão, via elevada que liga a Zona Oeste à Zona Leste de São Paulo, passando pela região central, é frequente a comparação com o Parque High Line, de Nova York. Mas seria este, de fato, um bom modelo para o Minhocão? Parece que não…
O High Line foi construído sobre uma linha férrea, localizada a Oeste de Manhattan, que havia sido desativada em 1980 diante do crescimento do escoamento de produtos por meio de caminhões. Estudos realizados em 1999 pela Regional Planning Association para a empresa proprietária do elevado propunham que a via fosse mantida e transformada em parque, mas um grupo de moradores do entorno reivindicava que ele fosse demolido.
O embate entre as duas propostas é similar ao que ocorre hoje em São Paulo. O Plano Diretor de 2014 prevê a desativação do Minhocão para carros, mas deixou seu destino a ser definido pela sociedade. Parte dela pede a demolição do elevado, alegando incômodos com o barulho dos carros e das pessoas, enquanto outra parcela reivindica a transformação da via em área verde.
Mas, em Nova York, um grupo de moradores que, de início, estava apenas dedicado a evitar que a estrutura fosse demolida, acabou fundando a Friends of the Highline, uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos que desde o início é responsável pelo financiamento e gestão do parque elevado.
De modo a convencer a Prefeitura e a população de que o parque era viável, a Friends of the Highline conduziu estudo em que demonstrou que o valor a ser gerado por meio do parque em impostos sobre as propriedades do entorno ultrapassaria o custo de sua construção. Os estudos mostraram a possibilidade de transformar o elevado em um parque linear verde de luxo, financiado por um mecanismo conhecido como “rezoneamento”, que alteraria os antigos usos industriais e comerciais da região e passaria a permitir usos mistos e habitacionais, inclusive ampliando o volume de construções, chegando a coeficientes de aproveitamento consideravelmente altos.
Aprovado em 2005, este rezoneamento, que foi chamado de Special West Chelsea District Rezoning, envolvia apenas uma parte do que é o Parque High Line hoje – entre a 16th e 30th Street, e entre a 10th e 11th Avenue – e permitia o aumento do potencial construtivo nos imóveis do entorno do parque, mediante algumas ações que podiam ser combinadas: ou a realização de melhoramentos no bairro relacionados à construção deste trecho do parque (cerca de 20% do total) – como construção de escadas, elevadores, banheiros públicos, museus, praças etc. –, além da restauração e implementação do próprio parque; ou a transferência de direitos de construir para áreas mais de borda, de modo a evitar a verticalização dos lotes próximos ao elevado – as áreas que recebessem esse potencial construtivo a mais poderiam construir até 6 e 6,5 vezes a área do terreno; ou, ainda, a construção de unidades habitacionais a preços acessíveis, com empreendimentos que poderiam chegar a até 7,5 ou 12 vezes a área do terreno, dependendo da sua localização – na época, calculava-se que seria possível produzir cerca de mil novas unidades com este incentivo.
Esta última é conhecida como política de habitação inclusiva pois promove a produção de habitação a preços acessíveis como condição para aprovação de um grande empreendimento, ou como retorno exigido pela possibilidade de construir mais, entre outros tipos de contrapartida urbanística.
O gráfico que segue mostra a verticalização que era esperada, possibilitada pela existência de terrenos vagos ou sem uso que foram paulatinamente substituídos por novos empreendimentos.
Simultaneamente ao rezoneamento, em 2004, a Friends of the Highline e a Prefeitura de Nova York organizaram um concurso para selecionar um projeto para o parque linear. Em 2005, a proprietária CSX Transportation Corporation doou a estrutura para a Prefeitura para a transformação em parque público. O governo municipal, a partir das melhorias advindas do rezoneamento e do recolhimento antecipado de impostos territoriais, pagou grande parte dos custos das duas primeiras fases da construção. A associação arcou com o restante, por meio de recursos provenientes de doações e filantropia.
Os estudos iniciais que embasaram o rezonamento, em 2005, planejavam gastos de US$ 85 milhões até a abertura do primeiro trecho, em 2009. O valor total para a construção do parque foi de aproximadamente US$ 180 milhões (o equivalente a aproximadamente R$ 560 milhões), segundo o site da New York City Economic Development Corporation (NYCEDC).
EFEITOS: AUMENTO DOS ALUGUÉIS, EXPULSÃO DA POPULAÇÃO MAIS POBRE
Como se vê, foi necessário transformar o elevado em artigo de luxo, estimulando transformações imobiliárias que valorizaram a região, para que este pudesse ser financiado quase integralmente pelo poder público. Assim, a Prefeitura abriu mão de recursos que poderiam ter sido utilizados em outras áreas para financiar a transformação valorizadora, concentrando recursos públicos em uma intervenção que mais interessou ao mercado imobiliário que aos moradores do entorno.
Com todos estes incentivos públicos à transformação imobiliária, a área mudou muito. Se antes abrigava trabalhadores e moradores de classe média, passou a receber residências de luxo e tornou-se um ponto turístico importante da cidade, atraindo hotéis e museus. O preço dos imóveis no entorno do parque subiu 103% entre 2003 e 2011, como mostra estudo da NYCEDC, e, consequentemente, expulsou para áreas mais distantes a população que não podia mais pagar os altos aluguéis.
Este efeito foi maior que o ocorrido em outras regiões no entorno de parques na cidade, como se vê pela tabela abaixo. A exceção é o Prospect Park, cuja transformação imobiliária foi ainda mais voltada para espaços corporativos e famílias de alta renda.
Certamente, este aumento de preços expulsou mais famílias do que produziu unidades habitacionais com preços acessíveis. Até porque as unidades com preços acessíveis em Nova York são direcionadas para famílias com até 80% da renda média familiar da cidade, que é alta. Assim, as habitações podem atender a famílias de classe média e não necessariamente àquelas que mais precisam. E tudo isso viabilizado quase integralmente com recursos públicos.
Chama a atenção também o fato de que o entorno do High Line se alterou consideravelmente: há grafites de artistas famosos e prédios projetados por renomados escritórios de arquitetura, que substituíram as antigas construções. Cercado por galerias de arte e pelo novo Whitney Museum, o parque é também usado para exposições de arte contemporânea.
DISNEY WORLD ON THE HUDSON OU PARQUE PARA NOVA-IORQUINOS?
Enquanto aqui a Prefeitura estuda fechar o acesso público ao Parque Minhocão, com grades e restrição de acesso às pessoas, o High Line fica aberto o ano inteiro, das 7h às 19h. Nos meses mais quentes, o horário se estende até as 23h. O espaço é intensamente usado e recebe mais de 4 milhões de visitantes por ano. No entanto, a transformação em parque de luxo dá o tom da velocidade da circulação de pedestres, ou melhor, turistas: lenta e em fila indiana, parando para uma selfie ou compra de paletas mexicanas, e impede certos usos.
As típicas atividades nova-iorquinas realizadas nos demais parques não são permitidas ali: não se pode andar de bicicleta, skate ou patins, nem tocar música em alto volume sem permissão; fumar ou entrar com animais domésticos também está proibido. Eventos ou reuniões com mais de 20 pessoas não podem ocorrer, a não ser com autorização prévia.
Em síntese, hoje o parque é mais para turistas do que para os nova-iorquinos, que reclamam de sua super lotação, apelidando a área de “Disney World on the Hudson”. No entanto, o turismo, viabiliza sua manutenção, baseada na visitação como vitrine para os eventos e apoios, e no consumo de produtos e serviços ofertados no elevado.
O High Line pertence à municipalidade, mas a sua gestão é feita pela Friends of the Highline, em parceria com o Department of Parks & Recreation de Nova York. A organização tem conselho formado por 43 pessoas e uma diretoria central. Ela contribui com 98% do orçamento anual de manutenção do parque, que hoje está em US$ 3 milhões (o equivalente a aproximadamente R$ 9 milhões), obtidos de doações privadas, de sua loja oficial e da locação do espaço para festas, desfiles de moda, eventos corporativos, entre outros.
Como se pode notar, a construção do parque norte-americano foi essencialmente financiada com recursos públicos. Além disso, demandou transformações de interesse do mercado imobiliário que levaram ao aumento dos aluguéis na região e, assim, expulsaram antigos moradores. Ainda, sua manutenção depende de atividades de consumo no parque e, sobretudo, de doações, algo típico no cenário norte-americano, mas quase inexistente no Brasil.
Assim, o exemplo do parque nova-iorquino está inserido em uma cultura específica – de filantropia e participação da sociedade civil na dimensão pública norte-americana –, muito diferente da nossa. Trata-se também de uma cultura na qual o consumo é a base do negócio. Para viabilizar algo semelhante no Brasil, seriam necessários outros recursos. Possivelmente, mais recursos públicos!
E o que se quer, então, do Parque Minhocão em São Paulo? Estímulo a uma frente de construção e valorização imobiliária ou um parque para os moradores, que possam seguir vivendo na região? Quem financia esta transformação urbana e para quem?
* Mariana Schiller é estudante do curso de graduação de Letras da FFLCH USP. Pesquisa espaços públicos e comuns urbanos e desenvolve iniciação científica sobre o Parque Augusta, orientada pela professora Paula Santoro. Integra a equipe do ObservaSP desde 2016. Lattes
* Paula Santoro é arquiteta e urbanista, doutora em Habitat pela FAU USP com bolsa na Universidade Politécnica da Cataluña e professora de Planejamento Urbano do Departamento de Projeto da FAU USP. Atualmente coordena o projeto ObservaSP junto ao LabCidade FAU USP. Lattes | Academia.edu
NR do MDM: além das oportunas e técnicas observações das especialistas , há também que se tomar em consideração que o Minhocão é uma aberração urbanística, haja visto ser um viaduto passando no meio de prédios residenciais (o que não ocorria com o High Line), causando graves problemas de saúde, segurança, invasão de privacidade e incomodidade insuportável a mais de 230 mil moradores-eleitores.
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