Sombra do Minhocão demonstra a importância
de pensar no chão da cidade
Sob o elevado, falta de luz, mau cheiro, barulho,
fumaça e lindos espaços destruídos
29.set.2023
Mauro Calliari
Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP
e autor do livro ‘Espaço Público e Urbanidade em São Paulo‘
Já cinquentão, o Minhocão continua mandando na cidade. Sua estrutura cindiu o centro em dois, gerou desvalorização e abandono e as discussões sobre seu futuro vão e voltam. Agora, surgiu mais uma ideia extemporânea, a de cavar um túnel.
Todo mundo –e eu também– adora andar em cima do Minhocão aos finais de semana. É um ponto de vista incomum e calmo sobre a cidade, longe do barulho e da fumaça dos carros.
O problema é que, além da parte de cima, existe, claro, a parte de baixo do Minhocão. E a parte de baixo é ruim, muito ruim, e não há sinais de que possa vir a melhorar enquanto a estrutura estiver por ali.
Num dia útil, fiz uma caminhada por debaixo do elevado, desde a praça Roosevelt até o largo Padre Péricles. Apesar de já ter andado dezenas de vezes em alguns trechos, a experiência do trajeto de ponta a ponta é sensorialmente desalentadora. E, contraditoriamente, joga luz sobre as possibilidades de uma pequena revolução urbana.
À eterna sombra do viaduto se somam a umidade, o cheiro, o barulho, a sensação de insegurança, o fechamento de negócios, as calçadas estreitas, as barracas, a fumaça.
No trecho entre a Roosevelt e o Arouche, vejo lojas fechadas com portas de aço, pichação e calçadas estreitas. Logo ali, as grades do terminal de ônibus Amaral Gurgel. Depois do largo Santa Cecília, uma sucessão de praças cortadas ao meio, barracas no canteiro central. A estação de metrô Santa Cecília despeja pessoas nas calçadas. Uma fila se forma, todos se encostam nos paraciclos. A presença de consumidores aumenta um pouco o movimento comercial: uma portinha que vende capinhas de celulares, um boteco, alguns brechós, vários cabeleireiros, uma loja de móveis usados, um xerox.
Comércio vizinho ao Minhocão – Mauro Calliari
O barulho de ônibus ecoa no concreto e impede conversas no estande de vendas de um prédio que anuncia “studios” de um ou dois dormitórios. O vendedor diz que é um bom negócio para investidores interessados em atrair usuários de Airbnb. Na praça Marechal Deodoro, dois funcionários tentam limpar o chão. A ciclovia central às vezes se interrompe com restos de lixo e comida. A cada vez que as calçadas se afastam, surgem respiros: estátuas, restos de jardins e até crianças. Um edifício novo oferece migalhas de urbanidade –um paredão alto cercado por um pequeno jardim e quatro lojas novinhas. Em dado momento, na avenida São João, o elevado passa por cima de uma avenida que passa por cima de outra avenida, a Pacaembu.
O passeio termina quando o elevado se dissolve na Francisco Matarazzo. Em todo o trajeto, o pedestre é acompanhado pelo barulho de motos e ônibus reverberando no teto de concreto, pela presença ubíqua de pessoas dormindo nas calçadas, pela dificuldade de travessia, pelo cheiro de cocô e por fachadas degradadas. Quem pode, foge logo para as ruas perpendiculares.
Funcionários da prefeitura limpam calçada próxima ao Minhocão – Mauro Calliari
Paradoxalmente, o passeio ao nível da rua confirma que o patrimônio da região poderia ser resgatado se não houvesse o manto de concreto. Dá até para imaginar um caminho arborizado ligando a praça Marechal Deodoro (já foi um lugar maravilhoso nos anos 40), o largo do Arouche (idem nos anos 60), o largo Santa Cecília (que já merece uma reforma). Dá ainda para abrir espaço com a retirada do terminal de ônibus, dá para requalificar o leito viário –aumentar calçadas e redistribuir as três pistas nos dois sentidos, com um bom espaço verde no meio. Dá para pensar em VLT, em ônibus elétricos que joguem menos fumaça e façam menos barulhos. Dá para fazer um monte de coisas, é preciso bons diagnósticos, bons projetos, arquitetos e urbanistas inspirados, participação popular, mas, sobretudo, liderança com visão de cidade.
Enquanto falamos, a coisa está no seguinte pé: o Minhocão tem que ser desativado para os carros até 2029. Deve virar parque, mas ainda pode ser demolido. A prefeitura anuncia que o PIU, Plano de Intervenção Urbana, que seria uma chave para a discussão, será instaurado, depois de anos de atrasos e judicialização. O prazo deveria ser suficiente para que as gestões encontrassem caminhos, e é longo o suficiente para não trazer ônus eleitorais elevadíssimos para prefeitos.
Lixo acumulado ao lado do Minhocão – Mauro Calliari
Se sair, será o fórum para discutir planos estratégicos para a questão do trânsito, das moradias sociais, do aluguel subsidiado para os moradores atuais que aguentaram anos de barulho, do comércio, das pessoas em situação de rua, da reurbanização da região. E também é o lugar de discutir e lançar bons projetos, derrubando a estrutura do elevado, ou mantendo pedaços de pé, ou ainda diminuindo a largura e abrindo espaço para a luz entrar.
Mas o debate pode sempre piorar. Agora, a prefeitura ensaia uma nova ideia, a de construir um túnel para substituir o trânsito no elevado. A ideia é tão extemporânea que talvez tenha sido lançada apenas para não dizer que não se pensou nos motoristas no ano eleitoral que se inicia. Estudos já divulgados mostram que o aumento de tempo no trânsito seria pequeno mesmo com a desativação do viaduto.
Em Seul, no final dos anos 1990, o então prefeito Mung-Bak Lee encampou a ideia de demolir seu viaduto Cheonggyecheon, um primo muito maior do Minhocão, com uma frase simples: “Vejo uma cidade para as pessoas e não para os carros”. Após 2.300 visitas e 1.900 reuniões (sim, esse é o número –nada acontece por acaso), foi batido o martelo num projeto e o viaduto veio abaixo em 2005. O trânsito e a cidade sobreviveram.
Mas, aqui, a falta de visão de cidade pode sim adicionar mais uma camada de exotismo ao descalabro atual. Assim, em vez de combater ou amansar o monstro de concreto que destrói o centro da cidade, corremos o risco de ter dois problemas: um viaduto em cima e um túnel embaixo. No meio dos dois, a sombra destruidora do Minhocão.